10 janeiro, 2006

 

92. Homenagem à Galharda e à Quina

Era duro, noutros tempos, o trabalho no campo. Apesar de tudo, nas sachas e nas regas, era frequente ouvir as moças, sozinhas ou em ranchos, cantar durante o trabalho, ou pelos caminhos, no regresso da labuta diária. Como ouvi a um velhote: - Quando éramos moços andávamos um dia inteiro a malhar, à noite íamos passar uma carga de contrabando e no domingo seguinte tínhamos força para andar aos pulos no baile.
Os próprios animais participavam no esforço das famílias para sobreviverem. Especialmente as vacas, para puxar ao carro ou para andar a lavrar dias inteiros, com o dono respectivo, rego abaixo rego acima. E ainda davam o leite, as crias, o estrume….
Esta quase, diríamos, “comunhão” fazia com que as pessoas se afeiçoassem aos animais e vice-versa.
E entram aqui duas vacas: a Galharda e a Quina.

















- Nestas fotos, tiradas de um filme familiar de 8 mm ou super 8, por voltas de 1977, época de transição em que já não aparecem vacas castanhas mas vacas de pelagem negra, leiteiras, menos aptas para o trabalho, que diminuía pouco a pouco, com o abandono do campo e a emigração para França.
Embora se não vejam nelas a Galharda e a Quina, que na altura já não existiam, servem estas como ilustração nesta homenagem. Aparece, contudo, o dono, Orlindo Jorge, que além da agricultura se dedicava ao comércio de produtos agrícolas.


As duas nasceram e foram criadas em casa de meus pais e compunham a junta que eu conheci, de pequeno, até perto da época em que saí de casa para ir estudar.
A Galharda era uma vaca linda, valente e muito mansa. Pendurava-me no pescoço dela, agarrava-a pelos cornos, fazia-lhe festas na testa e na barbela, e ela tudo suportava com paciência. Era contudo muito voluntariosa. Quando saía com as outras, ela ia sempre à frente. Não tolerava que fosse de outra maneira. Não era “bulhenta”. Ao cruzar-se com outras não “se pegava” com elas… mas se alguma lhe fizesse “carranca” e se dirigisse para ela, em ar de desafio e com ela cruzasse os cornos… já se sabia que era ela a vencedora e que fazia a outra recuar. Uma vez empurrou uma outra de tal forma que a levou contra uma parede de pedra solta que foi derrubada.
A puxar o carro, tinha força e às vezes, com outras… lá ia a “meia correia” para ela suportar a maior parte do peso.
Esteve muitos anos em casa de meu pai, até ser velha. Meu pai começou a dizer que tinha de se vender… dizia…. mas tinha de se decidir…. o que lhe custava... o que nos custava a todos….
Até que um dia… lá foi para o mercado de Alfaiates. Recordo minha mãe à sacada, cheia de pena, a ver partir a vaca…

Com a Galharda aparelhava a “Quina”. Também esta nasceu, cresceu e “foi ensinada” em casa de meu pai. Começou por ser conhecida por “Pequena” o que se abreviou para “Quena” e depois deu “Quina”. Também era uma bela vaca… mas ficava muitos furos abaixo da Galharda, a quem obedecia. Bem servida de chaves, abertas e equilibradas. A cor de um castanho mais claro que o da Galharda.
As duas vacas faziam uma das melhores senão a melhor junta do povo. E digo isto porque o ouvi a estranhos.
Também a Quina, ao fim de bastantes anos, foi vendida mas ficou na terra, nos Forcalhos. Como viveu muitos anos em casa do meu pai, de início fugia de casa do novo dono para a nossa…. E não vou contar o que acontecia… Meu pai jurou que nunca mais venderia uma vaca para os Forcalhos.
Um dia, fui aos Forcalhos de férias. Estava com meu pai que viu que a Quina ia com o novo dono pelo caminho de Aldeia adiante. Nós estávamos distantes. Diz-me meu pai:
- Queres ver uma coisa?
Assobiou… e a vaca, que ia distante, mas conhecia o assobio, começou a mugir, a mugir….

O que aconteceu connosco não era caso raro. Recordo-me de ouvir contar que tinha havido lágrimas na despedida de uma vaca do ti João “Aires”, quando, por velhice, foi levada para o mercado.

Aqui fica a minha homenagem à Galharda e à Quina que durante muitos anos serviram em casa de meus pais.

CHGJ

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Comments:
também meu pai tem muitas histórias sobre as vacas lá de casa...engraçado ler este texto...é como ouvi-lo a dizer que dormia numa cama improvisada no curral perto delas, para nao ter frio...ou das vezes que lhe fugiam e ia atrás delas por txões e txões até ao povo...=)
 
Excelente! :)
Grande vaca essa Galharda.
 
Isis: estas são de facto terras muito especiais com histórias irrepetíveis.

Pato suicida: Fico satisfeito com o teu comentário que não esperava.

El Mono: há vacas e vacas…
 
Meu pai tinha histórias e estórias intermináveis de vacas valentes, gulosas, manhosas... mas também dizia que não gostava de comprar ou vender vacas ou outros animais na terra porque voltavam sempre a casa do antigo dono...
 
Fernando:
Como dissemos, o que acontecia connosco não era caso raro.
Um dos problemas da venda de animais na terra é que eles fugiam para casa do antigo dono e isso podia ocasionar que o novo dono batesse no animal para ele não repetir a fuga. Isto indignava os antigos donos que ainda sentiam estima pelos animais vendidos e não gostavam de os ver maltratados.
 
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