24 julho, 2005

 

20. Jogos e brincadeiras I

Os jogos espelham, pelo menos muitas vezes, o ambiente em que se vive. Se os garotos da cidade brincavam aos policias e ladrões, nós, nos Forcalhos, divertíamo-nos ao contrabando.
Para este jogo traçavam-se dois riscos paralelos no chão de uma rua, distanciados, entre si, de alguns metros. Entre esses traços ficava a zona em que os carabineiros podiam tirar o contrabando e prender os contrabandistas.
O grupo de crianças escolhia dois elementos para carabineiros. O resto era tudo contrabandista e postava-se fora dos riscos. Os carabineiros ocupavam o seu posto. Dava-se o sinal e os contrabandistas atravessavam de um lado para o outro sem levar nada ou carregados de contrabando simbolizado, quase sempre, por pedras. A habilidade consistia em passar fugindo e fintando os carabineiros que se esforçavam por agarrar e prender os contrabandistas. Os presos ficavam inactivos até o jogo terminar. Este terminava quando todos os contrabandistas estivessem presos.
O grupo era mais ou menos numeroso, conforme os casos, e os espaços de actuação variavam de alguns metros a toda uma rua.

















Este jogo é uma adaptação que não reflecte, fielmente, a realidade pois a raia é uma linha (não um espaço compreendido entre duas linhas) com Portugal de um lado e Espanha do outro. Também os agentes que contrariavam a actividade dos contrabandistas eram de natureza diferente: os carabineiros espanhóis e os guardas-fiscais portugueses.
Julgo que a adaptação se explicará facilmente. O pequeno contrabando consistia em trazer mercadorias das aldeias espanholas para as portuguesas. Ia-se a Albergueria de Argañan, vendia-se uma dúzia de ovos e trazia-se um quilo de arroz, um litro de azeite, umas alpergatas, sandálias ou coisa similar. Na prática, os guardas fronteiriços só apareciam e tiravam os produtos no espaço compreendido entre a aldeia espanhola e a aldeia portuguesa, espaço traduzido, no jogo, pela zona delimitada pelos dois riscos. Ninguém podia devassar as casas à procura fosse do que fosse.

As ideias-base do jogo estão certas. Existe uma zona intermédia onde o contrabandista poderia ser preso ou o contrabando apreendido. O facto de o contrabandista poder ser espoliado pela guarda-fiscal ou pelos carabineiros pouco contava. Por isso se reduziram os agentes à espécie mais «folclórica», que dava mais vistas: os carabineiros.

Com a União Europeia, as mercadorias passaram a circular livremente e foram extintos todos os postos fronteiriços da guarda-fiscal e dos carabineiros, existentes nas aldeias raianas. A própria guarda-fiscal e os carabineiros foram integrados noutros corpos policiais deixando também eles de existir.
Em suma: deixou de haver o tradicional contrabando na nossa área. Isto, aliado a um menor número de crianças na aldeia, condenou este jogo ao desaparecimento. Para memória aqui fica este apontamento.
(Fonte: Notícias dos Forcalhos n.º7 de Janeiro de 1987)
C. H. G. J.

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Comments:
A tradição já não é o que era. Confirma-se mais uma vez.
 
Se calhar a tradição mantém-se. O contrabando é que é diferente. E se antes socialmente era aceite hoje, já não o é devido à mudança da sua natureza: a droga... E se antes o contrabando era para sobrevivencia de uma população e feita pela generalidade desta hoje esta população mantém-se alheia a tal contrabando.
 
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